O ubuntu é ‘liberdade indivisível’
O ubuntu é ‘liberdade indivisível’
Para me envolver com o Outro como sujeito, como indivíduo livre como eu mesmo, como outro ser humano, eu também tenho de me tornar sujeito, reconhecendo nossa sujeição comum à história, à contingência e ao destino, explica o teólogo norte-americano Charles Haws
A partir da ótica do ubuntu, a liberdade e a autonomia do indivíduo andam de mãos dadas com a responsabilidade pelos outros. É por isso que “ubuntu significa principalmente a interconexidade dos seres humanos”, ou seja, seres fundamentalmente livres em relação – uma liberdade indivisível.
Para o teólogo norte-americano Charles Graham Haws, essa relação entre sujeitos livres ocorre a partir do momento em que eles reconhecem sua “sujeição comum à história, à contingência e ao destino”. “Não existe um eu singular que preexista a nossas relações com os outros. Sempre existimos tanto no singular quanto no plural”, sintetiza.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Haws também aborda as relações entre o ubuntu e o cristianismo. Para ele, “o ubuntu nos ajuda a compreender a noção de ‘comunidade cristã’, lembrando-nos de um tipo de kenosis na busca da justiça”, explica.
Além disso, o ubuntu nos ajuda também a compreender nossas relações com outros “sujeitos” não humanos. SegundoHaws, “para que o ubuntu não se associe ao mito da predominância da humanidade sobre a natureza ou l’animot (como escreve Derrida), ele não pode se limitar a dizer que o humano só pode se sentir plenamente humano em relação com a humanidade apenas”.
Charles Graham Haws é formado em filosofia e ciências religiosas pelo Carson-Newman College, no Tennessee, dos EUA. Também é mestre em teologia pela McAfee School of Theology, da Mercer University, de Atlanta, nos EUA, com a dissertação Re/writing Tradition and the Tradition of Re/writing: The Crucified God as the Foundation and Criticism of Christian Theology. É membro da American Academy of Religion e da Society of Biblical Literature. Dentre outros, é autor do artigo Suffering, Hope, and Forgiveness: The Ubuntu Theology of Desmond Tutu, publicado no Scottish Journal of Theology.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as noções centrais para se compreender o ethos do ubuntu?
Charles Haws – Ubuntu significa principalmente a interconexidade dos seres humanos, que é uma determinação da compreensão dos seres humanos como seres fundamentalmente livres – livres, por exemplo, de qualquer limitação fora da pessoa individual. Como o traduz a proverbial expressão xhosa, ubuntu ungamntu ngabanye abantu, “a humanidade de cada indivíduo está idealmente expressa na relação com outros” ou, se me é permitido parafrasear Tutu, o ubuntu é “liberdade indivisível”.
Também é importante reconhecer que o ubuntu é um termo sul-africano que representa um ethos africano polissêmico humanista e religioso. Variações do conceito proliferam nas línguas banto, que se multiplicam na África central, oriental e meridional. Elas geralmente expressam comunitariedade, respeito, dignidade e generosidade.
IHU On-Line – Qual a contribuição da teologia do reverendo Tutu para a compreensão do ubuntu?
Charles Haws – Uma compreensão popular do ubuntu em evidência hoje deriva do uso do conceito como nome de um sistema operacional de código-fonte aberto desenvolvido pela Linux . O sistema é movido por uma filosofia de software livre.
A compreensão popular apresentada pelo software da Linux dificilmente constitui a concepção robusta que Tutu tem do ubuntu. Sua teologia se concentra não na liberdade de indivíduos, mas na interconexidade desses indivíduos ou, como eu disse acima, na “liberdade indivisível”.
Agora, o ubuntu avança rumo à justiça, não à vingança; ele se dirige rumo à restauração, não à retaliação.
IHU On-Line – Para o senhor, “a teologia do ubuntu de Tutu é desafiadora para a compreensão dominante da teologia ocidental”. Por quê?
Charles Haws – O ubuntu se distingue tanto do individualismo cartesiano quanto do coletivismo homogêneo da submissão à “vontade geral” de Rousseau . Em A democracia na América, De Tocqueville compara o pai da filosofia moderna, Descartes , com o pai do protestantismo, Lutero , satirizando: “Quem não percebe que Lutero, Descartes e Voltaire empregaram o mesmo método?”.
De acordo com o ubuntu, nenhuma dessas opções combina satisfatoriamente a liberdade e a autonomia do indivíduo com sua responsabilidade pelos outros; nenhuma das opções o chama a assumir o fato de ser livre somente na medida em que está interconectado, e que sua liberdade é inseparável de sua busca por justiça. De fato, a compreensão teológica do ubuntu por parte de Tutu afirma que Deus criou a humanidade indissoluvelmente interconectada.
Tutu acreditava que esse era o caso da Igreja sul-africana branca na questão do apartheid, cuja cumplicidade se refletiu fortemente nas convicções teológicas da Igreja. Se a Igreja sul-africana branca não se considerava responsável por intervir, por condenar a sistemática segregação do apartheid, então ela não tinha qualquer percepção de sua conexidade com os negros.
IHU On-Line – A partir da ética do mundo, como é possível compreender a importância e o sentido da reconciliação e da justiça?
Charles Haws – Citando Derrida , poderíamos dizer que a afirmação da conexidade em meio ao apartheid por parte de Tutu – que os africânderes não estavam livres dos povos xhosa ou zulu (ou vice-versa) – era efetivamente desobediência civil, “não desafio da lei, mas desobediência com relação a alguma disposição legislativa em nome de uma lei melhor ou superior” .
Assim, em uma era de terrorismo globalizado, da exploração de sociedades abertas e da tentativa de afirmar (embora de maneiras calculadas) as regras da lei democrática e dos direitos humanos, o que o ubuntu busca? Como professor visitante do programa “Semester at Sea”, durante a primavera de 2007, Tutu discutiu o clima de medo existente nos EUA depois do 11 de setembro – uma terrível atmosfera de insegurança.
A autonomia luterano-cartesiana mencionada anteriormente impregna o sujeito humanista, pois, como “o ser humano é a medida de todas as coisas”, ele é o autor de todos os sentidos e tem o domínio sobre si mesmo e seu mundo. Heidegger questiona essa tradição no Ocidente:
De fato, o apartheid seria a brutalidade desumana e bárbara a ser denunciada, e o ubuntu ofereceria um “humanismo” alternativo ao sabor do apartheid, de gosto amargo. O ubuntu criticaria o sujeito humanista como dominador e autônomo – no caso do apartheid sul-africano, o africânder como superior – definindo o “sujeito”, pelo contrário, como relacional… Junto com a obra de Lévinas , Derrida, Nancy e outros, o que eu encontro no ubuntu é um tipo de movimento duplo que “não converte a relação anárquica e assimétrica com o Outro na visão sinótica da totalidade social, nem institui um novo princípio de justiça baseado no ideal comunitário dos valores morais compartilhados” .
Voltando a Heidegger, uma das percepções mais importantes e temáticas centrais de Jean-Luc Nancy é que os indivíduos de forma alguma estão fundamentalmente separados um do outro, o que é muitíssimo semelhante à concepção de Heidegger a respeito de Mitsein [“ser-com”] em Ser e tempo (1929).
IHU On-Line – Qual o valor e o significado do ser humano e da vida humana para o ubuntu?
Charles Haws –
Charles Haws – Como escreve o biógrafo Anthony Sampson , Mandela foi educado com a noção africana da fraternidade humana, ou ubuntu, que descrevia uma qualidade de responsabilidade e compaixão mútuas. Mandela contava histórias sobre uma pessoa que viajava por um país e parava em um vilarejo para pedir água e comida.
Além disso, eu identificaria, com Nancy, “a essência do cristianismo como abertura: uma abertura do ‘eu’ e do ‘eu’ como abertura” . Assim, eu diria que o ubuntu nos ajuda a compreender a noção de “comunidade cristã” lembrando-nos de um tipo de kenosis na busca da justiça que não espera para perguntar a quem você reza (ou não reza).
IHU On-Line – O senhor afirma que, à luz do ubuntu, “o perdão (…) deve se mostrar mais profundamente quando toda a esperança está perdida”. Em sociedades com forte violência e pobreza, como as africanas e as latino-americanas, qual a contribuição do ubuntu para a construção de uma sociedade mais justa?
Charles Haws – Escrevi em um artigo anterior que, para Tutu, “Deus, em Jesus Cristo, reconcilia a humanidade com o divino, afirmando a particularidade humana na particularidade de Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que também conecta a humanidade à bondade universal de Deus”. Essa ideia de reconciliação e de perdão é essencial ao cristianismo.
O perdão, mesmo em sociedades marcadas por violência e pobreza, efetiva-se, de acordo com o ubuntu, ao buscar a reconciliação, ao recusar perpetuar ciclos de sujeição à retaliação ou de responsabilização do tipo “toma lá, dá cá”. O ubuntu nos coloca estas perguntas: cremos que pertencemos a um todo maior e somos diminuídos quando outros são humilhados ou diminuídos, e, parafraseando Mandela, vamos perdoar, procurar a reconciliação – viver de acordo com o ubuntu – a fim de possibilitar que as comunidades ao nosso redor sejam capazes de melhorar?
IHU On-Line – A partir do ethos do ubuntu, qual a compreensão da nossa relação com a natureza e da proteção das vidas de seres não humanos?
Charles Haws – Se compreendemos corretamente que “a humanidade de cada indivíduo se expressa em termos ideais na relação com outros” ou que “eu sou eu mesmo somente em relação com outros”, temos de perguntar até que ponto este “eu” – assim como esse “outro” – está limitado ao gênero homo. De fato, as questões sobre o que constitui a “humanidade” e qual será o legado do “humanismo” se renovam, pois a própria ideia de uma “humanidade” compartilhada – algo que o ubuntu defenderia – sofre sob o peso da história e capenga em crise.
Na busca do ubuntu por cultivar comunidade, responsabilidade e justiça nos seres humanos, ele certamente se opõe à exploração, presumivelmente também à exploração da natureza. Mesmo assim, a concepção científica ocidental da natureza, que provém do humanismo renascentista e glorifica a capacidade humana de explorar e controlar a natureza, vendo a natureza agora como uma distribuição probabilística de energia com uma tendência à entropia, não facilita um senso de justiça mais do que humano. Talvez os recentes desastres ambientais e suas devastações façam essa questão voltar à mesa de discussão.
Por Moisés Sbardelotto